Artigo: Lembrando Birobidjan




Lembrando Birobidjan
 
Publicado em  Boletim ASA nº 96, set-out/2005

Em 2004, a Região Autônoma Judaica (RAJ), cuja capital é, ainda hoje, a cidade de Birobidjan, completou 70 anos de existência. Aqueles que guardam memórias familiares dos anos 30 têm alguma idéia das grandes esperanças que a RAJ despertou na esquerda judaica. Mas nem sempre é clara que esperança era essa. Para os que liam a Constituição da União Soviética, nos anos 60 e 70, a menção da RAJ suscitava um certo orgulho, embora nem sempre se soubesse exatamente do quê. Apesar de sua importância, a presença de Birobidjan acabou se tornando imprecisa e fragmentária.
As origens da RAJ são complexas. Devem ser procuradas na situação dos judeus russos, desprovidos historicamente de direitos, entre eles o de pleno acesso à terra e à educação - realidade que a revolução de outubro se propôs a resolver. Em segundo lugar, na grandeza da cultura ídish e na sua natural vocação para consolidar-se como cultura nacional. Em terceiro, nas disputas entre o movimento sionista e o Bund ( Liga Geral dos Trabalhadores Judeus Russos), que introduziu o tema da necessidade ou não de um Estado judeu. Quarto, no papel hegemônico que, depois de 1917, será desempenhado na comunidade pela célebre Evreiskie Sektsii, a Evsektsii, a Seção Judaica do Partido Comunista - que minou a influência do Bund. E por fim, nas discussões internas da Evsektsii, e desta com a liderança partidária sobre os caminhos a serem seguidos para resolver definitivamente o “problema judeu” na União Soviética e, talvez, no mundo.
A Evsektsii insistiu particularmente no aprofundamento do antigo conflito entre o ídish e o hebraico, consolidando uma crítica militante ao sionismo. Para os seus teóricos, o ídish era o idioma “das massas” e o hebraico, do “inimigo de classe”, da burguesia, dos sionistas e dos rabinos. Não foram poucos - por exemplo, o teórico Chaim Jitlovsky - os que pretendiam ver um dia o ídish como o idioma universal de todos os judeus, elo laico de uma sociedade “nacional em forma, socialista em conteúdo”, como se dizia na época. Apesar da crítica ao sionismo, parece claro que, dentro desse objetivo, Lênin, Stálin e a Evsektsii concordaram inicialmente que era fundamental a consolidação de um território judaico, a partir do qual a nacionalidade pudesse finalmente se realizar. Rompiam os comunistas, claramente, com as posições históricas do Bund, que viam essa solução nacional como uma fantasia, e se aproximavam de ansiedades típicas sionistas. A Evsektsii insistiu na necessidade de fixar o homem judeu no campo, como preâmbulo necessário para o sucesso de um empreendimento nacional-territorial.
Em meados dos anos 20 passou a funcionar o KOMZET, o Comitê para o Estabelecimento dos Trabalhadores Judeus no Campo. Inicialmente, atuou no sentido de assentar judeus nas suas regiões históricas, Ucrânia, Bielo-Rússia e Criméia. No entanto, em grande medida por conta dos conflitos étnicos existentes na área, a tendência que buscava um território judaico acabou triunfando. O livro de I. Sudarskii, talvez ainda localizável em alguma antiga biblioteca, Birobidjan e Palestina, de 1928, defendeu a opção Birobidjan, afirmando a necessidade de um território a partir do qual a cultura ídish laica pudesse se desenvolver sem conflitos com outras etnias. O governo soviético, sob o especial entusiasmo de seu presidente, Mihail Kalinin, decretou a reserva do distrito de Biro-Birobidjanski, no interior da Sibéria, junto à fronteira da China, para tal fim, em 1928. Em maio de1934 a RAJ foi oficialmente estabelecida. Seu idioma oficial foi, como não podia deixar de ser, o ídish.
O KOMZET e diversos organismos atuaram nos esforços para deslocar populações judaicas soviéticas para o extremo-oriente. Parcelas substanciais da intelectualidade ídish e judaica, tanto dentro quanto fora da Evsektsii, na União Soviética e no exterior, saudaram o empreendimento com grande entusiasmo. Personalidades como Albert Einstein e Marc Chagall, em diferentes momentos e de diferentes maneiras, se envolveram com este projeto bolchevista. Foram abertas linhas especiais de financiamento e delimitadas áreas para o assentamento rural. Muitos pioneiros se recordavam de emocionantes cerimônias de concessão de títulos de propriedade às fazendas coletivas. O segundo plano qüinqüenal (1933-1937) pretendeu estabelecer pelo menos 150 mil judeus na região. A possibilidade de uma pátria socialista judaica despertou espíritos pelo mundo todo e serviu para consolidar, entre muitos judeus, a crença no caráter libertador da revolução russa.
Numa escala internacional, portanto, Birobidjan parecia delinear um projeto ambicioso, aparentemente mais realista que aquele dos sionistas. A ICOR (Associação para a Colonização Judaica na União Soviética) espalhou comitês por vários países, associados geralmente ao Partido Comunista. Sua ação estendia-se aos judeus comunistas, evidentemente, mas também aos aliados e outros movimentos e setores da comunidade judaica. A partir de 1935, o KOMZET organizou uma estrutura capaz de receber os interessados em estabelecer-se em Birobidjan. Tal alistamento internacional foi particularmente bem-sucedido na Lituânia, Estados Unidos, Argentina, Chile e Uruguai. Há muitas lembranças sobre a abnegação, heroísmo e crença desses pioneiros.
Mas é claro hoje que algo aconteceu de errado. O modelo pluralista leninista foi substituído pelo centralizador stalinista. A Evsektsii foi extinta em 1930. Esse fato, apesar de reforçar o autoritarismo étnico russo, não parece ter atingido especialmente o projeto da RAJ, mas certamente limitou-o. Os historiadores, no entanto, apontam os expurgos de 1936-38 como o primeiro dos golpes que a Região Autônoma sofreu. A partir desse momento, com efeito, o seu papel começou a tornar-se nebuloso. Em 1937, o líder da RAJ, Iosif Libeberg, ex-chefe do Instituto de Cultura Proletária em Kiev, e o chefe do Partido na região, Matvei Havkin, foram presos. Deu-se início a uma série de prisões e deportações. As acusações foram as de “trotskismo e nacionalismo burguês”. Sobre a esposa de Havkin, Sofia, recaiu a acusação de tentar matar Kaganovich, quando este visitou a RAJ em 1936. A denúncia afirmava que ela teria oferecido ao líder stalinista um guefilte fish envenenado. A culinária judaica viu-se assim colocada num dos centros da “grande conspiração” contra a União Soviética.. Os expurgos na região atingiram em cheio a intelectualidade ídish e a KOMZET foi extinta. Essa realidade desestimulou migrações internas e interrompeu as imigrações externas. Assim, apesar dos planos existentes, em 1939 apenas 18 mil judeus viviam na região, numa população de 109 mil pessoas, e somente 25% deles trabalhavam no campo.
A partir de então, portanto, a RAJ começou a sofrer um lento processo de desagregação. As migrações internas retornaram após a Segunda Guerra Mundial. Muitos judeus sobreviventes e órfãos foram conduzidos a Birobidjan, em algo que parecia um renascimento do antigo projeto da Evsektsii. A desconfiança das autoridades soviéticas, no entanto, também retornou. A criação bem-sucedida do Estado de Israel e o seu desenvolvimento político no quadro de alianças da Guerra Fria lançaram dúvidas sobre a lealdade das lideranças da RAJ. A partir de 1949 e nos anos seguintes, até o 20º Congresso do Partido Comunista da União Soviética, prisões ocorreram de forma sistemática em Birobidjan. A isto foi somado o crescente anti-semitismo pessoal de Stálin, que culminou na “conspiração dos médicos”. 
E, no entanto, a RAJ ainda estava ali, na Constituição. A força das proposições da Evsektsii persistiu, embora um tanto abstrata e imprecisa. É significativo que a maioria das lideranças e ativistas comunistas da RAJ tenha continuado confiante no triunfo conjugado da revolução e da causa judaica. Havkin, que permaneceu preso até 1956, entendia o stalinismo como um trágico acidente de percurso no processo revolucionário. Entre os prisioneiros do expurgo de 1949 estava Boris Miller, teatrólogo e editor do Birobidjaner Shtern. Também perplexo com os acontecimentos, ele nunca deixou de acreditar no triunfo definitivo da justiça soviética. Num poema escrito na prisão, em 1954, dedicado a seu filho, ele afirmou que “a visão do brilhante Kremlim” era a única garantia que podia ter de que em breve ambos se encontrariam.
Os sentimentos ambíguos quanto à RAJ são, portanto, compreensíveis. Emergindo numa determinada fase da Revolução, teve seu caminho interrompido em um segundo momento, quando a pluralidade já não podia mais ser tolerada. Derrotados dentro de suas fileiras, derrotados, estrategicamente, pelos sionistas, os fundadores de Birobidjan persistiram, no entanto, ao longo de décadas escuras. E nisso, além de revolucionários confiantes, foram, também, judeus. 

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